Márcio Rodrigo Vale Caetano
Mestre e doutor em Educação pela Universidade Federal
Fluminense
Professor adjunto na Universidade Federal do Rio Grande -
FURG
Hoje, no Brasil, assiste-se, cotidianamente, a um crescente
deslumbramento e interesse pelas questões culturais, sobretudo nas esferas
acadêmicas e/ou políticas. Essa questão parece elevar a centralidade da cultura
para patamares ainda maiores que o da educação, da política, da economia, da religião...,
quase que nos levando a crer que estaria ela, em um nível superior ao da
invenção ou condição humana. Essa centralidade não significa necessariamente
tomar a cultura como um nível epistemológico superior aos demais níveis
sociais. Mas, olhá-la como uma instância produtiva/construída/orgânica, que
atravessa o social e nos auxilia na cadeia de significados que damos às coisas
e aos fatos. Afinal, para existir é preciso ter significado e, para ter
significado, as coisas e os fatos pedem a cultura produzida pela sociedade, os
sentidos e nomes.
A discussão torna-se ainda mais intensa, se pensamos as
conexões entre a cultura e a educação. No senso, esse eixo tem sido analisado
entre a total semelhança e a radicalidade da diferença entre elas. No geral, a
educação é identificada como a escola/escolaridade e a cultura com a
erudição/informação. Neste arranjo, cabe à educação transmitir os produtos
culturais de determinada sociedade. Porém, essa perspectiva se refere ao
aspecto conservador da educação e/ou cultura. Não deverá ser esquecido que, enquanto
a educação transmite produtos e formas culturais “conservando-os”, nesse mesmo
processo, o sujeito, por ser dinâmico e ativo na produção de conhecimento,
recebe o que lhe é transmitido, mas o ressignifica, modificando a cultura segundo
sua criatividade, interesse e experiência.
Na complexidade que envolve essa questão, existe algo
importante para o debate: conservar e/ou renovar a cultura a ser universalizada
pela educação; ou seja, que formas, comportamentos e/ou produtos culturais devem
ser “preservados” (para aqueles/as que acreditam na possibilidade) e quais os
que devem ser substituídos por outros ou totalmente esquecidos, inclusive na
memória? Seja qual for a decisão, o resultado será fruto dos campos de
conflitos e relações de poder da/na cultura. Será ela que concederá à sociedade
os elementos determinantes para a decisão. Então, disputar a cultura é
primordial para reconfigurar práticas educacionais, valores e princípios
religiosos, discursos científicos e prioridades do Estado. Em termos mais
simplistas, a cultura determinará o que será melhor para a sociedade e,
obviamente, o que a educação deverá transmitir e o Estado garantir. Neste
sentido, quando olhamos a inserção de fundamentalistas religiosos nas instâncias
do Estado brasileiro, ameaçando as dimensões da laicidade e a liberdade, o que
está em cheque é a criatividade fundamental para a reconfiguração ilimitada dos
arranjos culturais e das formas de vivermos a cidadania.
Dada a importância desse assunto, farei um giro na escrita e
espero que o/a leitor/a me perdoe. A laicidade tem sido assunto presente na
vida cotidiana da população brasileira, desde os anos iniciais do regime republicano
no século XIX; entretanto, o caráter laico do Estado reemergiu com expressiva
visibilidade e impacto nos últimos anos, sobretudo, após a forte presença de
fundamentalistas religiosos no centro do cenário político brasileiro. Nesse
sentido, temas como o Ensino Religioso nas escolas públicas, a
descriminalização do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, os
direitos reprodutivos, as pesquisas com células-tronco, a despatologização da
transexualidade ou a patologização das identidades homossexuais têm mobilizado
a sociedade civil organizada, os fundamentalistas religiosos e diferentes
setores e atores do Estado brasileiro. De fato, pastores evangélicos no Brasil
ganham notoriedade nacional por se oporem publicamente nos meios de comunicação
a projetos de leis que beneficiam a população LGBT. Ao lado da autonomia do corpo
da mulher (limitado à ideia de defesa do aborto), a homossexualidade é tema
recorrente nas eleições brasileiras, ganhando mais status midiático que
questões estruturantes como a educação escolar, a geração de emprego, o transporte
público, o escoamento de produção agrícola e industrial e a saúde. Este exemplo
me faz pensar que a sociedade, por diferentes motivos, regula a atividade
sexual e, principalmente, o corpo. Para muitos e muitas, as identidades e
práticas sexuais precisam confirmar as expectativas do sexo anatômico dadas no
nascimento e garantir o controle conservador da sociedade. A heterossexualidade,
neste viés limitado, tornou-se a meta do desenvolvimento humano.
Vale lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(ONU, 1948), aquela que o Brasil é designatório, toma dois de seus trinta
artigos para tratar a relação entre a produção de conhecimento (mediada e
atravessada pela cultura e universalizada pela escola) e a religião (fundada e
mantida na cultura). Um aspecto relevante do debate proclamado pela Declaração refere-se
à liberdade (religiosa). A Declaração menciona em um mesmo artigo o direito à
liberdade de pensamento e de consciência, com o direto à liberdade de religião.
Portanto, refere-se de uma tríade de liberdades, cada qual com seu significado;
mas mantendo entre elas, o direito do foro íntimo de suas decisões religiosas,
por exemplo. Contudo, esse mesmo direito à liberdade, a ninguém lhe dar a
autoridade de impor sua crença aos demais sujeitos. Nenhuma crença pode, neste
sentido, definir e/ou estabelecer sua doutrina na condução dos princípios do
público, da república. Com isso, não lhe é dado o direito de tornar
obrigatórios os seus valores para todos da sociedade, nem mesmo para os que
sejam seus fiéis, porque esses podem depender, em algum momento, de contar com
as garantias e direitos dados ao cidadão.
Neste sentido, existe uma intensa conexão entre democracia,
princípios republicanos, laicidade e escola pública. Nenhum grupo pode tornar
suas leis religiosas como a lei civil, ou seja, válida a todos. Nenhum grupo pode
determinar um valor cultural a ser universalizado na escola. A imposição de um
grupo representaria, em si, a restrição às demais crenças e pessoas,
configurando a tirania de uns sobre outros, ameaçando a democracia e a criatividade
humana que ressignificam o cultural. Daí a relevância insubstituível do caráter
laico, tanto do Estado, quanto da própria esfera pública.
A liberdade é o que me permite pensar que a incompletude
cultural reflete na cidadania porque esta última não consiste em receber, sem
postular, um ato no qual os sujeitos deixam suas contribuições às necessidades
sociais, ao pensamento e à eleição de estilos de vida. Entretanto, a
criatividade cultural implica, em primeiro lugar, democracia. Pode parecer
estranho aplicar a palavra “democracia” no âmbito criativo da sexualidade, porém,
sem dúvida, necessita-se um novo conceito de democracia quando falamos do direito
de controlar nossos corpos; quando dizemos nossos corpos, diz-se que eles são
nossas propriedades. Como na política e na cultura, a sexualidade é o lugar
imaginativo em que se reúnem os discursos sociais mais amplos. Porém, na
cultura, na política e na sexualidade também coexistem espaços onde se abre a
possibilidade de romper os significados, refazer os interesses, buscar as
ideias e onde a inconformidade pode possibilitar novas configurações de estar
no mundo. Sobre isto, os desdobramentos e configurações assumidas pelas LGBT me
parecem um bom exemplo.
Ainda que o mundo exista sem a nossa presença, nossa
presença no mundo nos exige muita criatividade para inventá-lo. Para que o
mundo tenha sentido, devemos criar/significar o que já contém, devemos aprender
a questioná-lo e a inventar o que ainda não existe em nossas petições no mundo.
Neste sentido, viver criativamente é também uma condição para criar/ampliar a democracia
e se criar com a democracia. E para a democracia é preciso a defesa do Estado Laico.
Gostei da reflexão do artigo, o Estado não pode ser visto como uma concepção religiosa e sim uma concepção que agrega tod@s de diversas matizes!
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