sábado, 31 de agosto de 2013

Estado laico, educação e cultura

Márcio Rodrigo Vale Caetano
Mestre e doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense
Professor adjunto na Universidade Federal do Rio Grande - FURG

Hoje, no Brasil, assiste-se, cotidianamente, a um crescente deslumbramento e interesse pelas questões culturais, sobretudo nas esferas acadêmicas e/ou políticas. Essa questão parece elevar a centralidade da cultura para patamares ainda maiores que o da educação, da política, da economia, da religião..., quase que nos levando a crer que estaria ela, em um nível superior ao da invenção ou condição humana. Essa centralidade não significa necessariamente tomar a cultura como um nível epistemológico superior aos demais níveis sociais. Mas, olhá-la como uma instância produtiva/construída/orgânica, que atravessa o social e nos auxilia na cadeia de significados que damos às coisas e aos fatos. Afinal, para existir é preciso ter significado e, para ter significado, as coisas e os fatos pedem a cultura produzida pela sociedade, os sentidos e nomes.

A discussão torna-se ainda mais intensa, se pensamos as conexões entre a cultura e a educação. No senso, esse eixo tem sido analisado entre a total semelhança e a radicalidade da diferença entre elas. No geral, a educação é identificada como a escola/escolaridade e a cultura com a erudição/informação. Neste arranjo, cabe à educação transmitir os produtos culturais de determinada sociedade. Porém, essa perspectiva se refere ao aspecto conservador da educação e/ou cultura. Não deverá ser esquecido que, enquanto a educação transmite produtos e formas culturais “conservando-os”, nesse mesmo processo, o sujeito, por ser dinâmico e ativo na produção de conhecimento, recebe o que lhe é transmitido, mas o ressignifica, modificando a cultura segundo sua criatividade, interesse e experiência.

Na complexidade que envolve essa questão, existe algo importante para o debate: conservar e/ou renovar a cultura a ser universalizada pela educação; ou seja, que formas, comportamentos e/ou produtos culturais devem ser “preservados” (para aqueles/as que acreditam na possibilidade) e quais os que devem ser substituídos por outros ou totalmente esquecidos, inclusive na memória? Seja qual for a decisão, o resultado será fruto dos campos de conflitos e relações de poder da/na cultura. Será ela que concederá à sociedade os elementos determinantes para a decisão. Então, disputar a cultura é primordial para reconfigurar práticas educacionais, valores e princípios religiosos, discursos científicos e prioridades do Estado. Em termos mais simplistas, a cultura determinará o que será melhor para a sociedade e, obviamente, o que a educação deverá transmitir e o Estado garantir. Neste sentido, quando olhamos a inserção de fundamentalistas religiosos nas instâncias do Estado brasileiro, ameaçando as dimensões da laicidade e a liberdade, o que está em cheque é a criatividade fundamental para a reconfiguração ilimitada dos arranjos culturais e das formas de vivermos a cidadania.

Dada a importância desse assunto, farei um giro na escrita e espero que o/a leitor/a me perdoe. A laicidade tem sido assunto presente na vida cotidiana da população brasileira, desde os anos iniciais do regime republicano no século XIX; entretanto, o caráter laico do Estado reemergiu com expressiva visibilidade e impacto nos últimos anos, sobretudo, após a forte presença de fundamentalistas religiosos no centro do cenário político brasileiro. Nesse sentido, temas como o Ensino Religioso nas escolas públicas, a descriminalização do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, os direitos reprodutivos, as pesquisas com células-tronco, a despatologização da transexualidade ou a patologização das identidades homossexuais têm mobilizado a sociedade civil organizada, os fundamentalistas religiosos e diferentes setores e atores do Estado brasileiro. De fato, pastores evangélicos no Brasil ganham notoriedade nacional por se oporem publicamente nos meios de comunicação a projetos de leis que beneficiam a população LGBT. Ao lado da autonomia do corpo da mulher (limitado à ideia de defesa do aborto), a homossexualidade é tema recorrente nas eleições brasileiras, ganhando mais status midiático que questões estruturantes como a educação escolar, a geração de emprego, o transporte público, o escoamento de produção agrícola e industrial e a saúde. Este exemplo me faz pensar que a sociedade, por diferentes motivos, regula a atividade sexual e, principalmente, o corpo. Para muitos e muitas, as identidades e práticas sexuais precisam confirmar as expectativas do sexo anatômico dadas no nascimento e garantir o controle conservador da sociedade. A heterossexualidade, neste viés limitado, tornou-se a meta do desenvolvimento humano.

Vale lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), aquela que o Brasil é designatório, toma dois de seus trinta artigos para tratar a relação entre a produção de conhecimento (mediada e atravessada pela cultura e universalizada pela escola) e a religião (fundada e mantida na cultura). Um aspecto relevante do debate proclamado pela Declaração refere-se à liberdade (religiosa). A Declaração menciona em um mesmo artigo o direito à liberdade de pensamento e de consciência, com o direto à liberdade de religião. Portanto, refere-se de uma tríade de liberdades, cada qual com seu significado; mas mantendo entre elas, o direito do foro íntimo de suas decisões religiosas, por exemplo. Contudo, esse mesmo direito à liberdade, a ninguém lhe dar a autoridade de impor sua crença aos demais sujeitos. Nenhuma crença pode, neste sentido, definir e/ou estabelecer sua doutrina na condução dos princípios do público, da república. Com isso, não lhe é dado o direito de tornar obrigatórios os seus valores para todos da sociedade, nem mesmo para os que sejam seus fiéis, porque esses podem depender, em algum momento, de contar com as garantias e direitos dados ao cidadão.

Neste sentido, existe uma intensa conexão entre democracia, princípios republicanos, laicidade e escola pública. Nenhum grupo pode tornar suas leis religiosas como a lei civil, ou seja, válida a todos. Nenhum grupo pode determinar um valor cultural a ser universalizado na escola. A imposição de um grupo representaria, em si, a restrição às demais crenças e pessoas, configurando a tirania de uns sobre outros, ameaçando a democracia e a criatividade humana que ressignificam o cultural. Daí a relevância insubstituível do caráter laico, tanto do Estado, quanto da própria esfera pública.

A liberdade é o que me permite pensar que a incompletude cultural reflete na cidadania porque esta última não consiste em receber, sem postular, um ato no qual os sujeitos deixam suas contribuições às necessidades sociais, ao pensamento e à eleição de estilos de vida. Entretanto, a criatividade cultural implica, em primeiro lugar, democracia. Pode parecer estranho aplicar a palavra “democracia” no âmbito criativo da sexualidade, porém, sem dúvida, necessita-se um novo conceito de democracia quando falamos do direito de controlar nossos corpos; quando dizemos nossos corpos, diz-se que eles são nossas propriedades. Como na política e na cultura, a sexualidade é o lugar imaginativo em que se reúnem os discursos sociais mais amplos. Porém, na cultura, na política e na sexualidade também coexistem espaços onde se abre a possibilidade de romper os significados, refazer os interesses, buscar as ideias e onde a inconformidade pode possibilitar novas configurações de estar no mundo. Sobre isto, os desdobramentos e configurações assumidas pelas LGBT me parecem um bom exemplo.

Ainda que o mundo exista sem a nossa presença, nossa presença no mundo nos exige muita criatividade para inventá-lo. Para que o mundo tenha sentido, devemos criar/significar o que já contém, devemos aprender a questioná-lo e a inventar o que ainda não existe em nossas petições no mundo. Neste sentido, viver criativamente é também uma condição para criar/ampliar a democracia e se criar com a democracia. E para a democracia é preciso a defesa do Estado Laico.

Um comentário:

  1. Gostei da reflexão do artigo, o Estado não pode ser visto como uma concepção religiosa e sim uma concepção que agrega tod@s de diversas matizes!

    ResponderExcluir

Olá!
Seu comentário é e será sempre bem vindo, desde que:
1. não contenha cunho racista, discriminatório ou ofensivo a uma pessoa, grupo de pessoas e/ou instituições;
2. não contenha cunho de natureza comercial ou de propaganda.
Agradecemos sua compreensão.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...