Felipe Bruno Martins Fernandes
Doutor em Ciências Humanas
Membro-fundador do CELLOS/MG
A transformação do apoio governamental às organizações da
sociedade civil nos anos 1990 aos dias de hoje tem relação direta com as
temáticas que o CELLOS/MG me convida a articular como forma de estímulo à
reflexão pré-parada: o fundamentalismo religioso, a saúde e a ciência. Deixarei
o fundamentalismo religioso para outro momento, mais ao final do texto, quando
analisarmos o período atual e os impactos dessa conjuntura em nossas produções
ativistas e acadêmicas e, mais importante, em nossas vidas como lésbicas, gays
e pessoas trans.
O movimento LGBTTT[1]
brasileiro emerge no final dos anos 1970 sob um governo de ditadura militar.
Como já escutei dizer James Green, historiador e um dos parceiros do CELLOS/MG,
possivelmente em um governo democrático o movimento teria emergido um pouco
antes. Entretanto, naquele momento, sujeitos e sujeitas ligados/as às lutas
políticas estavam em coalizão contra o autoritarismo. Era um momento de
“afirmação” homossexual, categoria esta presente no nome do primeiro grupo
fundado no Brasil, o Somos - Grupo de Afirmação Homossexual. Boa parte dos
dirigentes desse grupo tinham experiência em países onde homossexuais e trans
já se organizavam politicamente e a circulação de idéias desses contextos
contribuiu para a emergência de um movimento LGBTTT marcado pelos ideais de
transformação social e em coalizão com outras lutas políticas, sejam elas lutas
econômicas, em união com partidos políticos ou correntes da esquerda, sejam
elas lutas dos novos movimentos sociais como os movimentos feminista,
ambientalista, negro e outros. Desta forma a emergência do movimento LGBTTT no
Brasil é marcada por uma perspectiva libertária.
A chegada da Aids no início dos anos 1980 desequilibra e
re-orienta as organizações. Hoje falamos em “respostas coletivas” como um
conceito, entretanto, a construção das respostas coletivas à aids foram um
processo de sofrimento para toda a comunidade LGBTTT - e ainda o é, por mais
que evitemos, como comunidade, falar de aids nos dias de hoje. Entretanto, como
vítimas de preconceito e discriminação e frequentando os mesmos espaços de
sociabilidade e luta, a solidariedade grupal tornou possível com que a própria
comunidade se organizasse e enfrentasse a epidemia que era, naquele tempo,
associada quase exclusivamente aos homens gays e às pessoas trans MTF (male to female, em inglês),
principalmente as travestis. Novamente a circulação internacional de pessoas
LGBTTT, principalmente ativistas, teve papel central na construção dessas
respostas. Mas dessa vez o Brasil, menos do que no período de emergência do
movimento LGBTTT, não consumia as idéias dos países do centro, mas era
protagonista na exportação de um modelo de enfrentamento da epidemia que foi,
pelo menos nos anos 1990, o mais eficaz no mundo.
Nesse sentido as respostas coletivas em torno da aids
estruturaram a colaboração entre o movimento LGBTTT e o Estado no Brasil dos
anos 1990, portanto, uma colaboração com a área de governança da Saúde. Foi com
o Ministério da Saúde, e particularmente com a Coordenação Nacional de DST/HIV/Aids,
que o movimento teve sua relação mais próxima e intensa de colaboração. Desta
forma, a homossexualidade, como um objeto de políticas públicas, durante os
anos 1990, era um objeto de políticas de saúde. E foi como objeto de políticas
de saúde e com a colaboração das idéias dos movimentos LGBTTT e de intelectuais
da área que passou-se a entender a vulnerabilidade social da comunidade LGBTTT
como um fator determinante nos índices de infecção da comunidade ao HIV. Foi
assim que a homofobia passou a ter um lugar central nas políticas de saúde.
Com a eleição de Lula em 2002 a homossexualidade passou a ser
objeto de políticas públicas não apenas na área da saúde (e Justiça - ou
direitos humanos - como vimos no final do governo FHC), mas passou a ser tratada
por muitas outras áreas de governança, como Educação, Cultura, Segurança
Pública. Isso significa que, numa primeira gestão de Lula, ampliou-se como
nunca vista a colaboração entre Estado (em diversas áreas de governança) e
movimento LGBTTT. Entretanto, vimos na segunda gestão de Lula e na gestão de
Dilma (ainda em andamento) retrocessos importantes nessa colaboração que
começaram, ainda em 2007, por exemplo, com o fim dos processos de colaboração
entre Ministério da Educação e organizações da sociedade civil tendo esse fim
alcançado lugar de princípio do governo federal, que passou a defender menor
participação da sociedade civil na implantação de políticas públicas.
Voltemos um pouco ao momento pós-eleição de Lula. Naquele
momento a expertise do movimento LGBTTT ainda estava muito marcada pela
construção de respostas coletivas à aids e o modelo brasileiro de resposta à
epidemia, consumido internacionalmente (e em declínio naquele momento), ainda
era uma força na equação da colaboração entre Estado e sociedade civil. Com
base nessa expertise o movimento LGBTTT e o Estado ensaiaram a produção de um
modelo nos moldes das respostas coletivas mas, dessa vez, ao invés de “combate
a uma epidemia” focaram no “combate às violências”. A homofobia como uma categoria
de políticas públicas passou a organizar uma série de políticas em múltiplas
áreas de governança. No início do “combate à homofobia” pelo governo federal de
Lula víamos serem replicadas as mesmas táticas das respostas coletivas à aids.
Entretanto, como sabemos, problemas diferentes exigem respostas diferentes e
entraram em cena as universidades que passaram a “dirigir” as respostas contra
a violência. Nesse deslocamento muito se ganhou e muito se perdeu. Uma das
grandes perdas foi o apagamento da necessidade de continuidade de uma resposta
à epidemia da aids como uma das prioridades do movimento LGBTTT.
Se a segunda gestão de Lula e o governo Dilma representam
retrocessos em relação às agendas políticas do movimento LGBTTT isso se deve a
dois grandes fatores. De um lado a ausência de desejo político da gestão atual
em lidar com a homossexualidade e questões trans. De outro lado o
fortalecimento do fundamentalismo religioso e de uma vertente de extrema
direita (homofóbica e fascista) na cena pública brasileira. Nesse sentido vemos
todos os dias as tentativas de criminalização dos movimentos LGBTTT em que as
categorias “ativistas gays” ou simplesmente “ativistas” são usadas de forma
depreciatória e buscando relacionar os sujeitos ativistas LGBTTT a meros “propagandistas
da homossexualidade”, “destruidores da família” e outras acusações absurdas
quando, de fato, o que se vê é a crescente desumanização de integrantes da
comunidade LGBTTTT.
É necessário mencionar que mesmo na comunidade LGBTTT há uma
divisão que antes era mais difusa, se
pensarmos nos tempos da afirmação homossexual. Hoje vemos alguns poucos membros
da comunidade LGBTTT que se sentam com a presidenta, em conselhos, com reitores
e reitoras, ou seja “representam a comunidade” política e intelectualmente, ao
passo em que, em todas as cidades brasileiras parcelas enormes de nossa
comunidade continuam às margens vítimas de violência, exclusão, discriminação,
desempregadas, com falta de escolarização e sem projetos dignos de vida.
Por isso, concluo esse pequeno texto dizendo que o
fundamentalismo religioso tem um impacto negativo enorme em nossa comunidade.
Mas também devemos compreender que somos nós mesmos, pessoas LGBTTT, que nos
anos 1980 nos solidarizamos uns/umas com as/os outros/outras que estamos
perdendo nossa perspectiva comunitária. O esquecimento da aids como uma pauta
prioritária do movimento é um dos maiores abismos criados pela agenda de
direitos LGBTTT e, ao mesmo tempo, são nossas idéias, o nosso saber ativista e
intelectual, nossa teoria na carne como diriam as feministas negras
norte-americanas, que deve informar nossa ação política.
[1] Uso LGBTTT de
forma proposital com vistas a incluir o maior número possível de sujeitos
políticos do movimento.
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