segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Estado laico e os direitos sexuais e reprodutivos

Claudia Mayorga
Doutora em Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri 
Professora do Departamento de Psicologia da UFMG

O campo dos direitos sexuais e reprodutivos é um dos mais afetados pela não efetivação de um Estado laico. A obscura relação entre poder político e poder religioso no Brasil implica concretamente na violação desses direitos por alguns segmentos da sociedade que se opõem veementemente a demandas como a legalização e descriminalização do aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, o acesso a métodos contraceptivos, uma educação para a diversidade, pluralidade e autonomia moral, o reconhecimento de gays, lésbicas, travestis e transexuais como plenos cidadãos, acesso amplo e irrestrito a serviços de saúde sexual e reprodutiva, entre outros.

Em um Estado laico, o poder político e o poder religioso devem estar claramente separados. Tal separação é complexa e implica necessariamente alguns aspectos. Primeiramente, o Estado não pode privilegiar uma religião ou discriminar outras religiões presentes no seu território. O Estado deve permitir que as religiões possam se expressar em igualdade de condições. Em um Estado laico deve-se garantir que nenhuma religião imponha suas regras, dogmas ou princípios aos membros de uma comunidade política. Em outras palavras, nenhuma religião pode se apoderar do poder político.

De um ponto de vista filosófico e político, o projeto de laicidade do Estado se fundamenta em uma ideia muito poderosa: as pessoas tem direito de viver e tomar decisões sobre sua vida de forma autônoma e livre. No terreno da sexualidade e dos direitos reprodutivos, a tensão entre liberdade e autonomia por um lado e prescrições religiosas por outro é muito intensa. Vemos que alguns segmentos religiosos tem tentado romper com essa intenção histórica, mas o que presenciamos é uma tendência hegemônica de restrição da autonomia individual mediante a imposição de uma moral única. Um indicador potente que revela o quanto no Brasil ainda precisamos avançar nessa questão é a relação ambígua entre violação de um dogma religioso (pecado) e a violação de um direito (delito). Um Estado não laico tende a tratar essas duas dimensões como sinônimas ou frequentemente faz confusões perigosas entre essas duas esferas.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, os direitos sexuais abarcam os direitos humanos que já são reconhecidos em leis nacionais, documentos internacionais de direitos humanos e outras declarações acordadas. Eles incluem os direitos de todas as pessoas, livre de coerção, discriminação e violência, para: a obtenção do mais alto padrão de saúde sexual, incluindo acesso a cuidados e serviços de saúde sexual e reprodutiva; procurar, receber e conceder informação relacionada à sexualidade; educação sexual; respeito pela integridade corporal, escolher seus parceiros; decidir ser ou não sexualmente ativo; ter relações sexuais consensuais; casamento consensual; decidir se, não, ou quando ter filhos; e buscar satisfação, vida sexual saudável e prazerosa[1].

Assim, garantir os direitos sexuais e reprodutivos em uma perspectiva laica, significa, primeiramente, não penalizar ações e práticas que correspondam à vida privada das pessoas e sobre a qual devem ter autonomia e liberdade de decisão como o aborto, relações sexuais pré-casamento ou extraconjugais, uso de anticonceptivos, relações homossexuais, etc. Em segundo lugar, um Estado laico deve implementar serviços públicos de educação e saúde que garantam a efetivação desses direitos.

No campo da educação, um Estado laico e democrático deve oferecer uma educação para a sexualidade que seja diversa e plural, problematizando preconceitos, intolerâncias e violências que possam estar embasados em preceitos religiosos. No campo da saúde, o princípio deve ser o mesmo e o Estado precisa garantir o acesso a serviços de saúde que permitam vivenciar a sexualidade em uma perspectiva autônoma e saudável, prevenindo problemas relacionados à saúde sexual, bem como precisa assegurar atenção e tratamento de qualidade no caso de falha na prevenção.

A luta e defesa pelos direitos sexuais e reprodutivos exige o fortalecimento da laicidade do Estado, pois este consiste no instrumento jurídico por excelência para a defesa de nossas liberdades fundamentais, já que pressupõe muito mais do que a separação do poder político do poder religioso: implica no reconhecimento de que todos os seres humanos têm direito ao respeito de sua liberdade de consciência e consequentemente de sua prática individual e coletiva. Esse respeito envolve a liberdade de vincular-se ou não a uma religião ou professar convicções éticas específicas, o reconhecimento da autonomia e da consciência individual, a liberdade pessoal dos seres humanos e sua livre escolha de religião e convicção.


[1] Ver: http:/www.who.int/reproductive-health/gender/index.html

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